quarta-feira, 25 de novembro de 2009

AVALIAÇÃO

UM OLHAR COM INTEIREZA
Mara Alves[1]



O que é a vida? Mais precisamente, o que é a vida de um ser humano? O que e quem a define?
Rubem Alves


Ao ser desafiada a escrever um artigo sobre avaliação, no primeiro momento me senti incapaz de falar sobre algo que está presente desde meus primeiros anos de vida, e sei que ainda continuará até o final dela, pois sempre somos avaliados e sempre avaliamos. Em minhas recordações, apenas na escola eu sinto avaliação como uma lembrança negativa, que metia medo, ansiedade, decepção, raiva, choro. Sei que tive sentimentos positivos em relação a avaliação na escola, mas não me dá vontade de falar sobre eles. Acredito que os meus momentos de ser avaliada e de avaliar, refletiram mais emoções de sofrimento que de alegrias, por isso que meu corpo se recusa em enxergar a avaliação como necessidade de vida. Hoje me pergunto se isso tudo é necessário em nossa escola. Neste artigo, coloco em palavras o que me angustia em pensamentos. Dessa forma decidi refletir sobre alguns questionamentos pertinentes sobre essa tão sofredora avaliação.


Existem tarefas executadas com prazer na escola?

Ando pensando se existem atividades/tarefas prazerosas na escola que não sejam a hora do recreio, a entrada e a saída. Nesses momentos podemos deixar o corpo falar, porque não estamos na frente da professora e nem na sala de aula, que é tido como lugar da razão, da sabedoria, do conhecimento, do conteúdo, da avaliação. Quando estamos fora desse contexto não estamos preocupados se vamos responder certo ou errado, se sabemos escrever, ler, calcular; apenas trocamos olhares, toques, palavras, gestos, enfim, soltamos o nosso corpo para a vida, a convivência, a relação de compartilhamento com o outro, a troca, o prazer. Na sala de aula com a professora[2] não há troca, não há prazer, pois é somente ela quem pode dar, e só “dá” conteúdo, nota, castigo, puxão de orelha, elogios ou desaforos. Na sala não é permitido falar besteiras, e é tão bom falar besteira, contar piada, namorar, cantar, dançar. “A sala de aula não é a praça, nem a casa da gente”. Costumava ouvir isso do meu professor no antigo Segundo Grau. É... acho que não dá para ter tudo na escola, mas poderia ser melhor. Como? Poderíamos, professoras, alunas[3], diretora, orientadoras, pais – todos que fazem a comunidade escolar - definirem coletivamente, qual o caminho a ser seguido. Acredito que essa construção conjunta já seria um grande aprendizado. Estaríamos falando do que sentimos, pensamos, ouviríamos histórias, descobriríamos situações ainda não experienciadas, e não precisaríamos nesse momento de conteúdos específicos, disciplinas, avaliação,horário de aula, professora na frente. Talvez nem de escola, qualquer lugar poderia ser a escola. Acredito que assim possa se ter prazer nas tarefas escolares, porque estaríamos próximos de quem gostamos, de quem queremos bem.


A avaliação classifica/rotula o aluno em bom ou ruim?

Lembro que eu, na sala de aula, costumava dizer: “aquele aluno é bom, mas aquele ali não quer nada!”. Como eu classificava o aluno como bom ou ruim? Supervalorizava sua atuação nos momentos das socializações, na fala, no escrito. Não lembro de ter avaliado o silêncio do aluno como critério positivo, como conhecimento, como conteúdo. Lembro de deixar com “conceito baixo” o aluno que não falava, ou falava pouco, que ficava nervoso quando ia socializar alguma atividade. Será que o silêncio é sinal de falta de inteligência, de entendimento, de conhecimento, interesse, participação, ou será que eu enquanto professora sou incompetente para avaliar o silêncio do aluno? Digo como professora, porque me recordo de invejar o silêncio do meu marido, como sinônimo de concentração, de introspecção viva, de sabedoria, de conhecimento, como mulher/esposa/amante sinto meu marido como um homem que não precisa falar com a boca, porque ele fala com o olhar, com gestos, com o seu corpo, eu entendo sua linguagem, mas a do meu aluno não consigo, me pergunto por que? Será porque o meu marido não é meu aluno? E nós não estamos em uma sala de aula, estamos na nossa casa? Não tem conteúdo pré-estabelecido, conversamos sobre o cotidiano, amenidades, família, amigos? Será porque com ele posso demonstrar sem restrição paixão, carinho, amor, prazer, tolice, felicidade, medo? Tento justificar a minha falta de sensibilidade no papel de professora, argumentando, tentando me esconder atrás de justificativas como esta: A escola nos “ensinou” que na sala de aula eu não sou gente, não sou humano, não posso ter sentimentos, não posso deixar que o corpo pense, sinta por mim, tenho que deixar somente a razão, a cabeça funcionar, todo o resto na escola não é válido, não presta. O aluno só é bom se falar certo, se escrever certo, comportar-se de forma correta, educada, negar-se enquanto humano. Nos ensinou que quem estiver fora desses padrões não está apto a passar de série, no vestibular, ter um emprego, viver com dignidade, não merece ser gente. O meu amigo Orivaldo me indagou sobre os valores que acredito, que tenho, para valorizar o aluno que fala e desprezar o que não fala? Acredito que construí pela minha vida antes do IETA[4] que era preciso mostrar, apesar de talvez não ter, dinamismo, liderança, poder, e isso tudo advém através das notas altas, da entrega de todas as tarefas, de ser solidário e educada com a professora, não colar e muito menos dar cola ....Como diz o nosso poeta, o professor Nestor[5], “no meu silêncio eu escuto com o coração, com o meu corpo. Eu aprendi, “apesar” de está calado, tento ouvir o inaudível e ver o invisivel”.

Hoje, sinto que o que me faz bem na sala de aula é não mais querer vestir o papel só de professora, agora eu quero ser eu mesma, professora, mulher, esposa, mãe, amiga, filha, apenas gente, a totalidade do corpo-sentimento. Enxergar, vivenciar a escola como a minha casa, sem sistema, sem controle externo, apenas um lugar de troca, de contato com outras pessoas que queiram caminhar juntas, estabelecendo ou não caminhos, valores em comum. Sei que aprendi mais do que imaginei com as alunas,alunos e professoras e professores do IETA. Hoje sei que o meu corpo só come o que ele quer, gosta e dá prazer, que eu aprendo com os sentidos, com o coração, comungando com o outro.

Não sei se assim estaria avaliando, mas sei que teria maior possibilidade de ter mais prazer, brincar com os outros, que não mais seriam alunos ou alunas, mas pessoas. Porém, prefiro pensar que não estaria avaliando, mas apenas gozando a alegria do conviver, a mesma alegria da relação que tenho com meus amigos, a minha família: o gozo puro de viver sem cobranças, sem competição, onde cada ser está sendo, inteiro no que pode ser, cada um aceitando e respeitando o outro como ele é, sem as máscaras dos títulos. Enfim, SIMPLESMENTE VIVER.


Para ser grande, sê inteiro.
Nada teu exagera ou exclui.
Sê todas as coisas.
Põe quanto és no mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda brilha
Porque alta vive.
Fernando Pessoa

[1] Mara Alves dos Santos, professora do IETA, vivenciadora do Coletivo da Educação continuada e mãe do Aiury
[2] Ao longo do texto me refiro a professora e ao professor.
[3] Ao longo do texto me refiro a aluna e ao aluno
[4] IETA – Instituto de Educação do Estado do Amapá. Escola que trabalha com Formação de Professores/as.
[5] Nestor Ribeiro de Albuquerque, profeesor de língua Portuguesa, Literatura brasileira e vivenciador do Coletivo da Educação Continuada.